Uma criança com grandes problemas

— «Porque é que quer uma criança com tantos problemas?» — perguntou a diretora do centro de acolhimento, num tom duro, fitando a mulher de casaco comprido.
— «Temos bebés saudáveis, inteligentes, com futuro. Mas esta… esta nasceu com um diagnóstico. Para quê estragar a sua vida?»
Helena não desviou o olhar.
— «Ela é uma pessoa. É uma criança. Não me interessa o que está escrito no processo. Eu vim por ela.»
A diretora soltou um sorriso sarcástico, abanou a cabeça, como quem diz “faça como quiser”, e assinou os papéis. Uma hora depois, nos braços de Helena estava uma menina magrinha, de quatro anos, abraçada a um coelhinho de peluche gasto.
Chamava-se Sofia. Mal falava. Olhava sempre para baixo, como se tivesse medo de existir.
— «Sofia, agora sou a tua mãe. Vamos para casa.»
A menina não respondeu. Apenas apertou o peluche com mais força.
O primeiro ano foi um verdadeiro desafio. Sofia não entendia carinhos. Não percebia porque é que Helena lhe fazia festas no cabelo, porque lhe lia histórias antes de dormir ou porque a beijava na face. Às vezes escondia-se debaixo da mesa, tapava os ouvidos e murmurava palavras desconexas.
— «Helena, estás a perder tempo. Vais destruir-te sozinha. Para que precisas disto?» — diziam as amigas.
E sim, o primeiro ano foi duro. Sofia não sorria. Quando Helena tentava pegá-la ao colo, o pequeno corpo ficava rígido, como se estivesse a ser obrigada. Os médicos eram claros:
— «Tem atrasos no desenvolvimento. É possível que nunca acompanhe os colegas.»
Mas Helena nunca recuou.
Todas as manhãs sentava-se ao lado dela, com uma paciência que só o amor conhece.
— «Vês, Sofia? Isto é o sol. É quente.»
A menina desviava o olhar.
Não sabia o que era “calor”. No centro só recebia o básico: comer, dormir, lavar.
Ninguém a abraçava, ninguém lhe dizia «és minha».
Um dia de inverno, ao buscá-la na terapia da fala, a terapeuta suspirou:
— «Avanços muito pequenos. Não repete. As palavras não saem.»
Helena sorriu.
— «Os rios também começam por um fio de água. Um dia ela há de correr.»
Nessa noite voltaram a abrir um livro de imagens.
— «Gato».
Silêncio.
— «Cão».
A menina virou a cara.
E de repente, num sussurro quase invisível:
— «Coelho».
As lágrimas escorreram pelo rosto de Helena.
Era a primeira palavra.
Desde então, Sofia começou a falar: devagar, com esforço, mas sempre a avançar. Aos cinco anos dizia apenas vinte palavras. Aos sete já construía frases.
Quando chegou o momento de entrar para a escola, Helena decidiu colocá-la numa turma normal. Os professores hesitaram:
— «É muito tímida, muito diferente. Para quê fazê-la sofrer?»
Mas Helena insistiu.
Nos primeiros meses, Sofia sentava-se ao fundo, em silêncio, a olhar pela janela. Os colegas gozavam, chamavam-lhe nomes.
Tudo mudou no terceiro ano: Sofia começou a desenhar.
Os rabiscos transformaram-se em desenhos cheios de força e cor, como se o mundo interior dela transbordasse para o papel. A professora de artes visitou Helena:
— «Sabe que a sua filha tem um dom? Um talento verdadeiro.»
Helena chorou de felicidade.
Aos doze anos, Sofia continuava diferente. Podia passar horas a pintar, sem notar o tempo. Tinha apenas uma amiga: Inês, a filha dos vizinhos, que acreditava que “os artistas vêm sempre de outro planeta”.
No 3.º ciclo, o bullying piorou. Sofia escondia o rosto no cachecol. Mas à noite sentava-se diante das telas e pintava tempestades, mares escuros… e, pouco a pouco, amanheceres.
Helena entendia: era assim que a filha falava com o mundo.
Uma noite, Sofia disse-lhe:
— «Mãe… às vezes sinto que não devia ter nascido.»
Helena abraçou-a com força:
— «Tu és a melhor decisão que tomei na vida. Se tu não existisses, eu também não saberia para que viver.»
Sofia guardou essas palavras no coração.
Aos 15 anos, os seus desenhos foram enviados para um concurso da cidade. O júri ficou impressionado:
— «Há verdade nestas obras. Há alguém aqui que sabe sentir.»
Sofia ganhou o primeiro prémio.
Subiu ao palco a tremer. Mas na primeira fila estava Helena, a sorrir. E isso bastou.
Professores da Escola Superior de Belas-Artes repararam nela.
— «A sua filha é excecional», disse um deles ao analisar as telas.
Helena apenas sorriu. Para ela, Sofia era simplesmente a sua menina — a mesma que quase ninguém quis adotar.
Entrar na universidade foi uma prova dura. Tanta gente, tanta pressão… Sofia às vezes fechava-se no quarto escuro.
Inês, sempre sua única amiga verdadeira, vinha buscá-la para passear.
— «Não te escondas. Tens um universo inteiro dentro de ti. Mostra-o.»
E Sofia voltava a pintar.
No terceiro ano, as suas obras começaram a aparecer em pequenas galerias. Os críticos escreviam:
— «Uma jovem artista cuja pintura é um combate entre luz e sombra.»
Helena guardava cada recorte num álbum.
Houve recaídas, noites de ansiedade, feridas. Mas a terapia ajudou. Sofia aprendeu a transformar a dor em arte.
Aos 23, realizou a sua primeira exposição em Lisboa.
A sala encheu.
As pessoas choravam diante das suas telas.
Um jornalista perguntou-lhe:
— «Como começou a pintar?»
Sofia sorriu.
— «Um dia, uma mulher entrou num centro de acolhimento e disse: ‘Vim por ela’. Desde então pinto o mundo com os olhos dela. Ela é a minha mãe.»




